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    O que está por trás da violência extrema na guerra de facções

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    Cabeças decapitadas enfileiradas sobre um saco preto. Corpos carbonizados. Em um vídeo divulgado nas redes sociais e na imprensa, detentos parecem jogar futebol com uma das cabeças. As cenas captadas após o massacre que deixou dezenas de mortos em um presídio de Altamira, no Pará, são chocantes.

    Mas esse tipo de violência extrema nos assassinatos entre gangues é prática recorrente nos presídios brasileiros, especialmente desde 2016, quando os dois maiores grupos criminosos do Brasil, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), romperam uma trégua de anos e iniciaram uma disputa de caráter nacional pelo controle do crime.

    Na série de rebeliões em penitenciárias do Amazonas em 2017, por exemplo, presos de uma facção torturaram, degolaram, arrancaram órgãos e até comeram partes dos cadáveres dos integrantes do grupo rival.

    A crueldade fora do comum é difícil de compreender, mas tem um objetivo tático e não é exclusividade dos grupos criminosos brasileiros. Ao longo da história, a decapitação tem sido usada como forma de “desumanização” do oponente e estratégia de demonstração de poder.

    É o que explica o sociólogo Gabriel Feltran, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que estuda o crime organizado no Brasil há mais de 20 anos.

    Gabriel Feltran é autor de diversos livros sobre crime organizado no Brasil, entre eles ‘Irmãos- Uma História do PCC’. (Foto: arquivo pessoal)

    Diretor científico do CEM (Centro de Estudos da Metrópole) da Universidade de São Paulo e professor visitante da Universidade de Oxford, no Reino Unido, Feltran é autor de diversos livros sobre organizações criminosas, entre eles Irmãos – Uma História do PCC.

    Segundo ele, os atos extrema violência na disputa entre grupos são “signos da potência do vencedor”.

    “A violência extrema é própria de conflitos radicais, sejam étnicos, políticos, religiosos ou raciais. Radicais porque perde-se radicalmente a identificação com o outro. O seu sofrimento não me atinge mais”, explica.

    “É preciso decapitar, emascular, ou mesmo deglutir o oponente, como aconteceu nos massacres de janeiro de 2017. O outro é visto como coisa, verme, lixo.”

    Há níveis diferentes de violência entre facções?

    Segundo Feltran, o nível de violência varia entre os grupos criminosos. As táticas mais cruéis costumam ser usadas por facções que ainda não se consolidaram e utilizam a crueldade como estratégia para se afirmar, impor medo e diminuir o oponente.

    O massacre ocorrido no dia 29 de julho no Centro de Recuperação Regional de Altamira envolveu duas facções: o Comando Vermelho (CV) e o Comando Classe A.

    No caso, 58 pessoas que estavam na ala da prisão do Comando Vermelho foram mortas por integrantes da facção rival- 16 foram decapitados e os outros morreram por asfixia após serem sufocados pela fumaça de um incêndio iniciado pelo Comando Classe A.

    Nem todos os mortos são, necessariamente, integrantes de uma das facções, já que, segundo o professor da UFSCar, em vários presídios os detentos são separados conforme o endereço de residência – ficam na ala da facção A aqueles que moram numa região dominada por esse grupo criminoso.

    No último dia 31 de julho, outros quatro detentos que sobreviveram ao ataque em Altamira foram assassinados quando eram transferidos para um presídio em Marabá (PA), fazendo o número de vítimas subir para 62. A polícia ainda não deu explicações sobre como as mortes ocorreram.

    Segundo especialistas, facções menores e que estão em franca luta pelo controle de mercados criminosos costumam ser mais violentas na tentativa de oprimir os oponentes. (Foto: Bruno Santos/AFP)

    O confronto no presídio de Altamira é mais um de uma série de rebeliões em penitenciárias do Norte do país iniciadas a partir de 2016.

    Feltran explica que a ruptura da “paz” entre o PCC e o Comando Vermelho “repercutiu em diferentes Estados como guerra”, porque os grupos locais que antes estavam aliados a uma dessas duas facções passaram a disputar o controle do crime e do tráfico de drogas.

    A violência é maior no Norte, porque lá há uma fragmentação de facções que não possuem hegemonia sobre o mercado do crime. Já em São Paulo, a guerra entre grupos criminosos ocorreu sobretudo nos anos 1990, até o PCC se consolidar.

    “Os anos 1990 é que são conhecidos como ‘a época das guerras’ nas periferias de São Paulo. Elas só arrefeceram quando uma única facção teve a hegemonia de todo o mundo do crime no Estado”, diz o sociólogo.

    “No Rio, nunca houve hegemonia de uma facção, então a guerra seguiu muito ativa até se estabilizarem os territórios de cada uma. Ainda assim, ela eclode de tempos em tempos.”

    Segundo Gabriel Feltran, facções se formam e se consolidam nas prisões.(Foto: CNJ)

    No Norte do país, as diferentes facções estão em plena disputa pelo controle do crime. portanto, segundo o sociólogo, o uso da violência extrema tem sido uma tática comum desde que as rebeliões começaram, a partir de 2016.

    “Onde há guerra, não há (ainda) hegemonia constituída. Podemos estar assistindo a esse processo no mundo do crime do Norte e Nordeste.”

    “Se uma facção conseguir se construir como hegemônica ou os territórios de cada facção ficarem demarcados, a violência guerreira deve diminuir. A violência é sempre o recurso de quem não tem hegemonia, não tem legitimidade, mas tem armas.”

    Divisões

    A região Norte é divida por várias siglas, com destaque para Família do Norte, Comando Vermelho e PCC. Elas disputam as vendas de drogas nas cidades, mas também uma rota de tráfico que vem da Colômbia, Peru e Bolívia.

    Já em Estados do Nordeste, como Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, facções menores também foram criadas, mas em contraposição aos paulistas.

    Segundo Roberto Magno Reis Netto, doutorando em segurança pública pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisador do Laboratório de Geografia da Violência e do Crime, o Comando Classe A surgiu em Altamira recentemente, sob as asas do PCC.

    O crescimento econômico e populacional de Altamira, estimulado pela construção da usina de Belo Monte, fomentou a atuação das gangues, diz Reis Netto. Para ele, a oferta de rios na região também facilita o transporte de drogas para outros locais.

    Assim como Feltran, Reis Netto diz que os massacres funcionam como estratégia para os grupos criminosos.

    “Quando a facção está se expandindo, como essa de Altamira, ela costuma usar as mortes em presídios para eliminar momentaneamente líderes rivais, mas também de forma simbólica, para mostrar força para os rivais”, disse.

    Cada facção também tem maneiras diferentes de operar e isso impacta no uso maior ou menor da violência, diz Gabriel Feltran. (Foto: EPA)

    Cada facção também tem maneiras diferentes de operar e isso impacta no uso maior ou menor da violência. Gabriel Feltran destaca que o PCC atua como uma espécie de “maçonaria do crime”, uma “fraternidade, secreta, em que irmãos têm um compromisso com o universo criminal.”

    “Na facção, um megaempresário de drogas ilegais, com origem na favela, tem o mesmo compromisso do dono de um pequeno desmanche de veículos. Um deve fortalecer o progresso do outro. Ninguém divide os lucros de suas atividades e não há um caixa único”, diz.

    “Um ‘irmão’ não manda no outro, a estrutura é horizontal. Tampouco há controle territorial armado.”

    Já o Comando Vermelho possui uma estrutura mais hierarquizada, segundo o sociólogo. “O Comando Vermelho controla territórios com armas, atua como uma empresa do tráfico de drogas e se expande por franquias em cada território ou estado, hierarquizadas, com mando. São modelos muito diferentes.”

    De onde vem a ‘inspiração’ para a crueldade das facções brasileiras?

    Feltran lembra que assassinatos violentos, torturas e estupros foram usados como “arma de guerra” em diferentes países do mundo, em vários momentos da história. A degola é utilizada, por exemplo, pelo grupo extremista Estado Islâmico no assassinato de reféns.

    A “inspiração” das facções brasileiras para a predileção pela decapitação e o esquartejamento não viria, portanto, de uma gangue estrangeira específica, mas sim de uma simbologia consolidada pela história.

    Expor a cabeça do inimigo funciona como símbolo de “triunfo”, o esquartejamento seria uma forma de manifestar a submissão total do oponente, os estupros são usados para humilhar e subjugar os rivais. Ou seja, são estratégias de demonstração de força.

    Famílias começaram a enterrar os parentes mortos no massacre que matou 58 presos no Centro de Recuperação regional de Altamira. Uma mãe disse que teve que reconhecer o filho pela cabeça decapitada mostrada a ela dentro de uma sacola.(Foto: Bruno Kelly/Reuters)

    “Massacres (no Brasil) incluem a emasculação e a decapitação de oponentes, ou casos em que as vítimas cavam as próprias covas antes de morrer. No México, os cartéis torturam e arrancam pedaços de inimigos ou delatores com motosserras. Nas guerrilhas peruanas, isso também aconteceu”, exemplifica.

    “Na partição da Índia-Paquistão, como nas partições no leste europeu após a queda do muro (de Berlim), foram recorrentes o uso de estupro como arma de guerra. Mulheres eram devolvidas às suas comunidades depois de estupradas, portanto desonradas segundo a cultura.”

    Para suas pesquisas sobre organizações criminosas, Feltran entrevistou centenas de integrantes de facções. Ao justificar a violência contra os oponentes, os entrevistados tentavam desumanizá-los, classificando-os como vermes.

    “A violência nesses casos não é apenas ao sujeito, é ao que ele representa. É sempre violência política, portanto”, diz o sociólogo.

    “Há sempre uma homogeneização total do outro. ‘Quanto menos de vocês houver, melhor e mais puro o meu mundo se torna. Eu me faço forte não apenas ao te subjugar, é preciso exterminar esse cancro, esse câncer. É preciso mais, e a espiral não tem fim’.”

    Por que o Norte se tornou foco da disputa entre facções?

    Feltran destaca que o Norte é relevante para o mercado de drogas há muitos anos. O que mudou nos anos recentes foi o aumento da violência, com o acirramento da guerra entre facções desde que Comando Vermelho e PCC romperam a relação de relativa harmonia.

    “O Norte do Brasil é, ao menos há três décadas, um lugar de mercados ilegais pujantes e desiguais. Eles fazem pouca gente muito rica, são a base de sobrevida de muitas famílias, mas empobrecem e matam outros tantos. Nesse tipo de massacre, está em jogo a luta para sobreviver entre os empobrecidos”, diz.

    Feltran explica que um dos fatores que tornam os estados do Norte atrativos para o tráfico de drogas e o contrabando é o fato de estarem próximos às fronteiras com países exportadores dessas mercadorias, como Peru, Colômbia e Bolívia.

    Presídios lotados favorecem o controle por grupos criminosos, que arregimentam novos integrantes no próprio sistema prisional. (Foto: CNJ)

    Ou seja, o Norte é a porta de entrada de mercadorias ilegais que chegam a custo baixo para serem exportadas a peso de ouro conforme vão rompendo outras fronteiras.

    “Um quilo de cocaína que vem da Colômbia, por exemplo, e passa pelo Norte do Brasil, é exportado no Nordeste para ser vendido em gramas numa esquina de Londres, Paris, Berlim.”

    “O preço lá (na Europa) é cem vezes maior que na Colômbia. Essas fortunas vão parar em grandes bancos, corretoras, paraísos fiscais. A guerra lá debaixo também é alimentada lá de cima”, complementa.

    E qual o papel da política de segurança na guerra entre facções?

    Segundo Feltran, as facções se formam e se fortalecem no sistema prisional – local onde são arregimentados novos integrantes. Portanto, na visão dele, a política de encarceramento adotada no Brasil acaba nutrindo essas organizações criminosas.

    “(Há um) modelo equivocado de política de segurança, focado em prender os pequenos operadores de mercados ilegais. Esse modelo superlota cadeias e favorece as facções, que nascem e crescem nos presídios”, diz.

    A população carcerária brasileira cresceu 700% em 25 anos, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Hoje existem 727,5 mil presos e um deficit de 336 mil vagas – superlotação generalizada que dificulta o controle dos presos por agentes penitenciários.

    População carcerária brasileira cresceu 700% em 25 anos. (Foto: CNJ)

    Presos provisórios, ou seja, que ainda não foram condenados em definitivo pela Justiça, são 40%, da população prisional, segundo relatório de 2017 do Depen. No caso do Centro de Recuperação Regional de Altamira, 33 agentes penitenciários mantém 343 presos num presídio com capacidade para 163 pessoas.

    “Nosso modelo de segurança caminha para o oposto do que dá certo no mundo. Enquanto fala-se na Alemanha sobre regulação dos mercados ilegais, inteligência policial, prioridade ao crime violento e entrega universal de justiça, aqui o foco é repressão ostensiva ao operador mais baixo dos mercados ilegais”, diz Feltran.

    “O Brasil não consegue esclarecer nem 15% dos seus homicídios, mas segue superlotando cadeias com moleques favelados de 19 anos, e quer prender os de 15 também. É uma política caríssima e não apenas ineficiente: ela favorece a expansão das facções, todas nascidas e crescidas no sistema prisional. É uma política suicida, que nos joga num ciclo de mais e mais violência há 30 anos.”

    *Nathalia Passarinho, da BBC News Brasil.

     

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