Um trabalho remoto, sem horários fixos, pago em dólar. O contratante? Ninguém menos que o TikTok. Em um momento de crise econômica extrema, a oferta parecia irresistível. Felipe, desempregado, aceitou.
Ao lado de outros falantes de língua portuguesa recrutados no Brasil, Felipe conta que tinha uma função que parecia simples: ouvir o áudio de vídeos do TikTok e escrever o que era dito.
O texto transcrito poderia então ser usado para ajudar a alimentar a inteligência artificial da ByteDance, empresa chinesa dona do TikTok, como detalhou um dos gerentes do projeto.
A remuneração toda dependia do desempenho dos funcionários, e a promessa era a de que as melhores performances seriam contempladas com um bônus no final do trabalho.
O serviço tinha a duração pré-estabelecida de três meses: fevereiro, março e abril de 2021. Mas Felipe não aguentou uma semana.
Ele conta que entrou e saiu do “projeto”, como o trabalho é chamado pelas gerentes, da mesma forma: com uma mensagem no WhatsApp. Ele não tinha contrato ou qualquer documento regulamentando o serviço.
O que era para ser dinheiro rápido virou um inferno. O trabalho consistia em transcrever curtíssimos trechos de vídeos, de poucos segundos – por isso, para conseguir o vultoso pagamento combinado de 14 dólares por hora transcrita, era preciso trabalhar pelo menos 20 horas ouvindo vídeos.
Convertido para a moeda brasileira com a cotação a R$ 5,50, valor real utilizado pelos gerentes para a conversão dos pagamentos de março, a remuneração por hora de trabalho era de cerca de R$ 3,85 – 77% do valor de uma hora pelo salário mínimo brasileiro.
Mas o trabalho era tão massacrante que Felipe acabou saindo antes, sem receber nada. Não foi o único.
O TikTok foi, em 2020, o aplicativo mais baixado no mundo. Neste mês, a rede social alcançou a marca de 1 bilhão de usuários ativos por mês.
A popularidade se reverteu em dinheiro: a ByteDance dobrou os lucros no ano passado.
No total, ela faturou 34 bilhões de dólares no período, um aumento de 111% em relação ao ano anterior.
Neste ano, em abril, o Brasil foi o país que mais fez downloads do app, e a empresa está em franca expansão por aqui.
Além de já ter contratado executivos em áreas estratégicas, como políticas públicas, ela está com dezenas de vagas abertas – principalmente para cargos gerenciais.
Mas a contratação dos prestadores de serviço destoa do glamour da expansão da empresa.
O Intercept teve acesso a grupos com os brasileiros contratados para prestar o serviço de transcrição para a ByteDance.
Separados entre recrutamento, informes e grupos menores numerados, eram neles que as conversas e reclamações sobre o trabalho aconteciam entre as dezenas de contratados.
Uma ex-funcionária que também se desligou antes do fim do trabalho aceitou compartilhar sua experiência de maneira anônima.
“Pedi minha alforria quando começaram a pressionar que as metas deveriam ser batidas pela manhã”, ela desabafou.
E a pressão era grande. Em uma mensagem no WhatsApp, uma das responsáveis pelo projeto pediu aos funcionários que completassem as tarefas durante a noite – e “com fervor”. Caso contrário, não haveria mais trabalho no dia seguinte.
Contratação informal
Nenhum dos prestadores de serviço foi contratado diretamente pela ByteDance – mas, sim, por intermediários que prestam serviço para a gigante chinesa.
A busca por funcionários é rápida e feita pelas redes sociais. Natasha de Rose, psicóloga clínica do Rio de Janeiro e primeira pessoa com que os interessados no trabalho têm contato, é a caçadora de talentos – apesar de não ter vínculo com a empresa.
Em 1º de março, ela publicou em seu perfil no Facebook um chamado. “Quem tiver precisando aí de um freela e tiver realmente disposto a se comprometer com um trabalho home office, estou recrutando pessoas para trabalhar com transcrição pt-br. Maiores infos APENAS NO MEU WHATS”, dizia o post, que teve 16 comentários.
Os interessados, depois de contratados, iam para os grupos de WhatsApp, que concentravam as comunicações. Todos levavam o nome da ByteDance, além de um número – o de Felipe era o 6.0.
O trabalho de Felipe era completamente virtual. Antes de começar, os contratados tinham de passar por um rápido treinamento em vídeo.
A ligação com a ByteDance era evidente. Em uma reunião virtual gravada e depois disponibilizada aos novos recrutados, os recém-contratados aprendem a cortar áudios, transcrever os trechos selecionados e a mexer na plataforma utilizada para o serviço, além de terem uma rápida aula de português e das regras de transcrição.
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