Em uma rápida avaliação da gestão de Ricardo Salles a frente do Ministério do Meio Ambiente, a ex-ocupante do cargo Marina Silva é sucinta: “ele cometeu todos os erros”.
O principal deles, diz, ocorreu bem no começo, quando Salles aceitou o convite do presidente Jair Bolsonaro para comandar a pasta.
“O segundo erro foi ter aceitado a tarefa de destruir a governança ambiental brasileira”, disse Marina, que assumiu o ministério por cinco anos, durante os mandatos de Lula, e foi adversária de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018.
Em entrevista a BBC News Brasil, Marina falou sobre as queimadas que vêm devastando a região amazônica nas últimas duas semanas e da responsabilidade do atual governo sobre esse cenário.
Segundo a ex-ministra, incêndios sempre ocorreram, mas nunca incentivados pelo discurso de um presidente. Para ela, de todos as gestões que já estiveram à frente do Brasil, incluindo na ditadura militar, esta será a única que não deixará uma contribuição à conservação da floresta, mas poderá levar à sua “destruição total”.
Contra as acusações de que estaria sumida do debate público, convida os críticos a olharem sua agenda e diz que a atual crise ambiental do Brasil lhe causa “muita tristeza e indignação”.
“Para quem trabalhou e conseguiu, por políticas públicas, uma redução de 83% de desmatamento durante dez anos é muito triste ver tudo isso virando cinzas”, diz.
Leia os principais trechos da entrevista abaixo.
BBC News Brasil – A senhora publicou um artigo recentemente chamando de “holocausto” a onda de incêndios que atinge a Amazônia. A partir de sua experiência como moradora da floresta, ativista e ministra do Meio Ambiente, qual é a proporção da destruição que vemos hoje em comparação a outros momentos históricos? Por que ela é tão preocupante?
Marina Silva – Primeiro, é a maior quantidade de focos de queimadas na Amazônia desde que se tem monitoramento por satélite. Segundo, 70% dos focos de queimadas que temos hoje no Brasil estão na Amazônia. De cada três focos de queimada em um país da dimensão territorial do Brasil, dois estão na Amazônia.
Terceiro, a perda da biodiversidade, a destruição da floresta e a vulnerabilidade em que ficam as populações locais. E também saber que boa parte desses incêndios são em terras públicas que foram invadidas ilegalmente em função da mensagem totalmente desastrosa, inaceitável que o governo Bolsonaro passou.
Ganharam o governo enfraquecendo as ações de fiscalização, os órgãos de controle, dizendo que iam acabar com o Ministério do Meio Ambiente, com a indústria das multas. Criaram toda uma situação para favorecer o que está acontecendo hoje.
Então, para quem trabalhou e conseguiu, por políticas públicas, uma redução de 83% de desmatamento durante dez anos é muito triste ver tudo isso virando cinzas. Virando cinzas a floresta, a biodiversidade, a governança ambiental, as equipes e ainda ver o governo acusando aqueles que a vida toda lutaram para proteger a Amazônia.
BBC News Brasil – É por isso que a senhora usa uma palavra tão forte como holocausto?
Marina Silva – É porque a palavra ‘holocausto’ significa a destruição avassaladora de algo. E, neste momento, o que eu alerto é que não podemos deixar a tragédia se repetir. No artigo (publicado pelo El País Brasil), eu digo exatamente isso: os sinais estão sendo dados fortemente. Se nada for feito, a gente pode ter uma destruição total. Foi isso que aconteceu com o holocausto dos judeus, não foi?
Sinais é o que não faltaram: os que se omitiram, os que se acovardaram, os que não levaram a sério. Quando aconteceu já não tinha mais o que fazer. Não podemos repetir a história. E neste momento, o sinal é muito forte. Ele está sendo dado na forma de 38 mil focos de incêndio, numa das formas mais perversas que pode existir.
Então, é preciso que se tomem todas as medidas. Nós, ex-ministros do Meio Ambiente, estamos, juntamente com alguns membros da sociedade civil, propondo ao Congresso que crie uma comissão especial para criar medidas de combate ao desmatamento e recuperar as políticas ambientais. E que seja composta ouvindo os especialistas, os gestores públicos, as comunidades locais, os índios, os empresários que têm compromisso com a agenda ambiental, porque não são todos que concordam com o que está acontecendo.
BBC News Brasil – Ao falar sobre os incêndios, o presidente Jair Bolsonaro disse, entre outras coisas, que ONGS estariam por trás das queimadas para “chamar atenção“, porque “perderam a teta“. Como avalia os pronunciamento do presidente sobre o assunto? E que impactos declarações como essas trazem?
Marina Silva – Elas só agravam o problema. Porque ninguém, em sã consciência, pode dar credibilidade a uma fala dessas.
Agrava o problema por que temos um governo que não tem noção do mal que está fazendo ao Brasil, do ponto de vista ambiental, social, econômico, das nossas relações diplomáticas, dos nosso acordos internacionais.
Esse tipo de declaração não é verossímil, não tem condição. A sensação que eu tenho é que o presidente parece inconscientemente incompetente sobre esses assuntos.
Exige competência você estar na Presidência da República, liderar processos e é preciso ter consciência das incompetências para se assessorar com quem pode lhe complementar.
O ministro Salles é um antiambientalista. Ele é o operador da inconsciência da incompetência do Bolsonaro.
BBC News Brasil – A senhora anunciou pelo Twitter que a Rede vai entrar no STF com o pedido de impeachment do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Como avalia a gestão dele? E que erros o ministro cometeu até agora?
Marina Silva – Ele cometeu todos os erros. O principal erro foi ter aceitado a nomeação, não sendo um ambientalista. O segundo erro foi o de, não sendo um ambientalista, alguém que tem compromisso com o meio ambiente, ter aceitado a tarefa de destruir a governança ambiental brasileira.
Isso diz tudo. Ele desmontou o Serviço Florestal, a Secretaria de Mudanças Climáticas, a Agência Nacional de Águas. Ele desmoraliza a ação dos agentes públicos da área ambiental e do Inpe. É algo que não tem padrão.
E eu digo isso… não conheço o ministro. Estou me atendo a fatos, a resultados, e não tem como dizer diferente. Não dizer o que estou dizendo seria uma espécie de omissão ou conivência, porque é isso que está acontecendo.
BBC News Brasil – A senhora fez essa análise a partir do número de focos de incêndio registrados nas últimas semanas?
Marina Silva –Exato. Incêndios sempre existiram, mas nunca foram incentivados e suscitados pelo governo, como um discurso público desde a campanha.
Por mais que houvesse governos mais refratários, uns fizeram mais, outros menos, e dentro de todos havia resistência , nunca ninguém fez uma apologia a desconstrução da gestão ambiental do Brasil.
BBC News Brasil – Opiniões se dividem sobre as origens e motivações dessas queimadas e algumas pessoas argumentam que 60% delas acontecem em propriedades particulares, o que limitaria as ações do Estado. A pergunta que se faz nessas discussões é a seguinte: é justo culpar o governo Bolsonaro pelos incêndios?
Marina Silva –Se um prédio particular estiver pegando fogo, o governo não vai fazer absolutamente nada? Está queimando um prédio, totalmente particular, as pessoas que moram lá não são funcionárias do governo e ninguém vai socorrer porque é um prédio particular?
Aliás, as propriedades particulares [na Amazônia] têm 80% de reserva legal, é isso que diz a lei. A reserva legal, ainda que seja do proprietário, é de interesse público. E [segundo] os dados do Inpe, e de todos que fazem monitoramento do desmatamento, as maiores áreas desmatadas até agora são em terra pública, terras da União.
Se as propriedades privadas resolveram tocar fogo indiscriminadamente, seja em florestas seja em pastagens, com certeza foram estimuladas pelo discurso do governo, assegurando a eles que ficariam impunes. Foi o próprio presidente que prometeu acabar com a indústria da multa.
BBC News Brasil – Bolsonaro culpou ONGs pelas queimadas. Quem a senhora culpa pela situação calamitosa da floresta?
Marina Silva –A acusação que o presidente fez às ONGs é injusta e não é verossímil. O que está acontecendo hoje de forma descontrolada é resultado da política antiambiental do governo. Foram eles que suscitaram, que estimularam esse tipo de atitude.
Desmatamento sempre existiu, queimadas sempre existiram, é um problema grave. Mas é a primeira vez que se tem uma situação fora de controle. É a maior quantidade de focos de calor vistos na Amazônia desde que é feito o monitoramento.
Isso tem uma explicação. Por que em todas as gestões, foi preciso trabalhar com pessoas tocando fogo para desidratar a floresta e depois derrubá-la para pecuária ou exploração de madeira. Isso sempre aconteceu, mas essa forma descontrolada [vista hoje] é em função da desativação das políticas de prevenção contra o desmatamento, do enfraquecimento dos órgãos de fiscalização e de desacreditar os dados de satélites, além de [o governo] sinalizar que iria regularizar as áreas ocupadas ilegalmente, diminuindo a reserva legal e acabando com ela.
O filho do presidente da República [Flávio Bolsonaro] apresentou um projeto, que depois teve que retirar por pressão do próprio agronegócio, porque criaria um problema [ao acabar com a reserva legal em propriedades rurais]. O agronegócio brasileiro não é todo essa desgraça que nós estamos vendo.
BBC News Brasil – Além deste governo, as gestões passadas, das quais a senhora participou, não teriam responsabilidade sobre a situação atual? Este é um argumento constante nos debates sobre o assunto.
Marina Silva – O desmatamento que já aconteceu, aconteceu. Mas o Ibama, pelo menos na minha gestão, recebeu um concurso público para aumentar seus quadros. Durante a minha gestão, ganhou um órgão auxiliar, o Instituto Chico Mendes, com o qual inclusive quiseram acabar.
Durante minha gestão, o Ibama criou o Serviço Florestal Brasileiro, que eles levaram para o Ministério da Agricultura. Todos os órgãos ambientais foram fortalecidos. Criamos 20 milhões de hectares de unidades de preservação, que eles estão querendo descriar, se já foram criados, ou reduzir. Tivemos uma política de aumentar as áreas das populações tradicionais: eram cinco milhões quando eu cheguei, quando saí eram dez milhões.
O que existe historicamente é que todos os governos, uns mais e outros menos, e até a ditadura militar, deixaram uma contribuição. É a primeira vez que você tem um ministro que entrou para desmontar.
Todos os outros ministros ficavam brigando por seus orçamentos, por seus quadros, para que sua agenda pudesse prosperar. É a primeira vez que você tem um governo que diz que vai acabar com o ministério, não acaba [com ele] do ponto de vista legal, mas acaba do ponto de vista prático. Disse que não ia sair do Acordo de Paris, porque teve pressão inclusive do agronegócio para não sair, e na prática já saiu, porque o que está acontecendo hoje faz com que o Brasil não consiga alcançar as metas com as quais nos comprometemos.
BBC News Brasil – Durante sua gestão no Meio Ambiente foi criado o plano de combate ao desmatamento da Amazônia e o Fundo Amazônia. Como a senhora se sentiu com o bloqueio dos recursos da Alemanha e da Noruega?
Marina Silva – [Senti] muita tristeza e indignação de ver o presidente da República fazendo uma provocação sem nenhum padrão, dizendo que o fundo, que era para apoiar atividades econômicas sustentáveis, comunidades e fortalecer a governança ambiental, iria ser usado, a partir de agora, para regularizar áreas invadidas e desmatadas ilegalmente. Isso é uma afronta.
Os doadores estavam satisfeitos com a gestão e com os resultados e queriam continuar o programa, mesmo sob um governo com o perfil do Bolsonaro, e eles [o governo] fizeram essa provocação. Primeiro, o ministro Salles tentou dizer que o Fundo tinha problemas, foi provado pelo BNDES que não tinha, e então partiram para outra situação. Como alguém vai doar dinheiro para regularizar áreas desmatadas ilegalmente, se o objetivo é manter a floresta de pé, para evitar emissão de CO2?
Aí o governo dispensa R$ 3 bilhões a fundo perdido, que estava indo muito bem, dispensa o trabalho do Inpe, tenta desmoralizá-lo, desqualificá-lo, e contrata uma empresa privada para oferecer aquilo que o Inpe faz há mais de 30 anos.
BBC News Brasil – Lideres ambientais alemães e noruegueses procuraram a senhora para falar sobre o bloqueio?
Marina Silva –Tive uma conversa com o ex-ministro do Meio Ambiente [norueguês] Erik Solheim. Fomos nós dois que ajudamos a conceber e viabilizar o Fundo. [A conversa] foi no sentido de que se o governo não voltar atrás para manter o Fundo, com os objetivos para que foi criado, de proteção das populações locais, fortalecimento da governança ambiental, promoção de desenvolvimento sustentável, que se mantenha o Fundo em acesso direto das comunidades, do setor produtivo que tem projetos sustentáveis e dos governos estaduais. E ele está disposto a ajudar.
Chegando no Brasil, porque agora estou na Colômbia, vou pedir uma audiência com os ministros da Noruega e da Alemanha para pensarmos formas de, nesse contexto de crise ambiental e fiscal, não perdermos esses recursos, fazendo um movimento parecido ao que foi feito nos Estados Unidos. O Trump sinalizava uma coisa, mas as empresas e a sociedade faziam outras, se mantinham firmes. Então, tenho dialogado, sim, com essas pessoas para que a gente não perca esses recursos, porque imagina numa situação de crise você dispensar R$ 3 bilhões?
BBC News Brasil – Uma das críticas mais frequentes à senhora é sobre a sua ausência da arena política, o que diminuiria sua projeção no país e sua importância como voz contra o desmatamento. Por que a senhora “desaparece” da vida política por longos período de tempo?
Marina Silva –Olhe, a melhor forma de responder essa pergunta é vendo minha agenda e tudo de que eu disponho para dar visibilidade ao meu trabalho nas minhas redes sociais.
Não tenho mandato, tenho um partido pequeno, e trabalho incansavelmente. Agora, não posso obrigar os meios de comunicação a me colocarem na mídia. Mas o fato de não mostrarem o que eu estou fazendo não significa que eu não estou fazendo. Se alguém estiver interessado em saber o que estou fazendo, é só ir nas minhas redes sociais. É só procurar minha agenda. (…)
BBC News Brasil – O Brasil teve uma redução significativa no desmatamento de 2004 a 2012, período que coincide com sua gestão no Ministério do Meio Ambiente. O que é que deu certo naquela época?
Marina Silva –O que deu certo foi ter pessoas no Ministério do Meio Ambiente que eram comprometidos com a agenda ambiental. Eram pessoas que tinham compromisso ético, uma visão de quais eram os interesses estratégicos do Brasil numa agenda que a humanidade inteira está correndo atrás e um senso de responsabilidade com patrimônios ambientais do país.
Na minha equipe, tinha economista, geógrafo, biólogos, oceanógrafos, engenheiros, mas todos tinham compromisso com o meio ambiente e não estavam ali porque eram apadrinhados.
Deu certo, porque havia políticas estruturantes que foram feitas para o longo prazo. Não havia política pirotécnica. Fizemos 125 operações da Polícia Federal, colocamos 725 pessoas na cadeia, inclusive funcionários do Ibama. Nunca fiz pirotecnia com isso. Fizemos políticas de Estado, republicanas, com base nos princípios da legalidade, da impessoalidade e da transparência.