Imagine o caminho que um vírus precisa fazer para chegar a uma aldeia no meio da floresta, contaminar um, dois, dez, mil, 28 mil indígenas, como aconteceu com o novo coronavírus no Brasil desde o início da pandemia até o final de agosto.
Uma ampla pesquisa publicada nesta sexta-feira, 23, comprova o que se poderia desconfiar: o desmatamento, o garimpo ilegal e os casos de Covid-19 estão relacionados ao facilitar o contato dessa população com pessoas infectadas.
A partir de um modelo de efeitos fixos, a pesquisa cruzou os dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, com informações diárias do Deter – o sistema do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) que capta quase em tempo real o desmatamento na Amazônia.
Foram medidos os avanços do desmatamento e da mineração ilegal em mais de 5.000 municípios. O resultado aponta que essas duas causas explicam pelo menos 22% de todos os casos de Covid-19 confirmados em povos indígenas até o dia 31 de agosto de 2020.
“Os resultados são bastante relevantes para as políticas públicas, pois mostra que os efeitos negativos do desmatamento são muito maiores do que os imaginados porque acabam expandindo a pandemia para populações super vulneráveis”, diz o economista Humberto Laudares, autor da pesquisa, desenvolvida em seu doutorado na Universidade de Genebra, na Suíça.
Os resultados da pesquisa de Laudares foram publicados nesta sexta no boletim Covid Economics, do Centre For Economic Policy Research, que reune mais de 1.500 pesquisadores.
O Brasil registrou, até esta sexta-feira, 23, 155.962 mortes causadas pela doença desde que ela foi registrada pela primeira vez no país, em fevereiro deste ano. O número de casos com teste positivo para a doença chegou a 5.325.682.
Enquanto enfrenta os problemas causados pela pandemia, o desmatamento e os focos de incêndio também têm crescido de forma recorde no país sob a gestão Jair Bolsonaro (sem partido).
Os resultados da pesquisa mostram também que um aumento de uma unidade no desmatamento, por 100 km², está associado, em média, à confirmação de 2,4 a 5,5 novos casos diários de Covid-19 em indígenas, 14 dias após o desmatamento.
Dentro dessas duas semanas, 1 km² desmatado resulta em 9,5% a mais de novos casos de contágio. “Nos municípios que têm desmatamento e mineração ilegal, os casos de Covid sobem 179%, em média”, diz Laudares.
Existem no Brasil 311 povos indígenas, totalizando 760 mil pessoas (0,36% da população total). Em 31 de agosto de 2020, a pandemia causada pelo novo coronavírus havia afetado 158 dessas comunidades. Os casos de Covid-19 nos indígenas representavam até aquele mês entre 0,6% e 0,8% do total registrado no país -3,8 milhões de casos confirmados e 120 mil mortes até aquela data.
De acordo com a pesquisa, na região amazônica, a mortalidade indígena é a maior entre todos os grupos étnicos, enquanto para todo o país, ‘pardos’ e negros apresentam o maior número de mortes por coronavírus.
Na quinta-feira, 22, o ministro Luís Roberto Barroso rejeitou o Plano Geral de Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19 para os Povos Indígenas apresentado pelo governo Jair Bolsonaro ao STF (Supremo Tribunal Federal).
O magistrado não homologou o plano sob o argumento de que o documento é “genérico e vago”, o que inviabiliza a fiscalização de sua implementação, e deu 20 dias para o governo entregar um novo planejamento.
No início de agosto, o STF decidiu por unanimidade referendar a decisão individual dada por Barroso, em 8 de julho. O ministro havia determinado a obrigação do Executivo de adotar diversas medidas a fim de conter o avanço do coronavírus entre os índios.
Na ocasião, a corte mandou a União elaborar um planejamento para impedir a disseminação da doença na população indígena.
O desmatamento elevado e as queimadas sem controle sob a gestão Bolsonaro têm colocado o Brasil em uma posição delicada no contexto internacional. A Europa ameaça travar o acordo com o Mercosul. O agronegócio, principal motor de desmate, também tem sido visto com desconfiança no mercado externo.
Em setembro, apesar de o desmatamento na Amazônia ter sido menor do que no mesmo mês de 2019, ele se manteve elevado em relação à média histórica. Isso, apesar da presença do Exército na floresta, com a Operação Verde Brasil 2.
Segundo dados do Deter, houve uma diminuição de 33% nesse período. Em setembro de 2019, no entanto, no primeiro ano do governo Bolsonaro, foi registrado o recorde de desmatamento na história recente do Deter, com mais de 1.400 km² de destruição registrada por satélites. Mesmo com a queda, quase 1.000 km² de floresta foram derrubados neste ano.
O ranking dos meses de setembro com maior desmate tem 2019 em primeiro lugar, seguido por 2020 e 2018.Com os registros do Deter desde 2015 – somente a partir desse ano é possível fazer comparação, devido a mudanças de precisão do sistema –, a média de desmate registrado no mês de setembro é de 790 km².
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Reportagem da FolhaPress