Das pesquisas básicas ao último teste clínico em humanos, atualmente em andamento, foram sete anos de estudos até chegar ao Rapha, máquina portátil que une fototerapia à ação regenerativa do látex para tratar úlceras em pés diabéticos. Batizado com um nome hebraico que significa “cura”, o invento já patenteado pode ser o primeiro equipamento médico desenvolvido na Universidade de Brasília (UnB) a ser incorporado ao SUS .
Mas, apesar dos avanços, o objetivo será interrompido caso o governo deixe de pagar as bolsas mantidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico ( CNPq ), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia . É o que diz uma das coordenadoras do projeto, a doutora em Biologia Marcella Lemos Brettas Carneiro:
— Para nós, será morrer na praia, é não ter efetivado o trabalho. Fica complicado ter um projeto de tamanha complexidade, ainda que em fase final, só com voluntários. Sem a bolsa, os estudantes não têm a dedicação total nem motivação para atuar — lamenta ela.
Considerado pilar para o desenvolvimento científico e tecnológico do país, o CNPq declarou que só tem recursos para pagar as cerca de 80 mil bolsas ativas até o quinto dia útil de setembro (folha de agosto). Embora não tenha havido contingenciamento nessa rubrica específica, o orçamento aprovado para este ano foi deficitário, de R$ 784 milhões, o menor desde 2010 em valores nominais. A pasta da Ciência e Tecnologia tenta negociar solução com a equipe econômica para conseguir mais R$ 330 milhões até o fim do ano.
Assim, a exemplo do Rapha, que tem dez bolsistas, outras pesquisas promissoras em fase avançada pelo país serão afetadas pelo que já vem sendo chamado de apagão na ciência. Grupos de pesquisa que dependem da força de trabalho dos estudantes já anteveem as perdas.
Dos 22 pesquisadores do Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dez são apoiados pela agência. O resultado prático de uma eventual saída deles, que em boa parte precisam do recurso para se manter, será a estagnação do estudo sobre possíveis áreas já endêmicas no estado do Rio para o vírus mayaro , “primo” do chicungunha recentemente detectado na região pela equipe. Outra pesquisa em andamento investiga a coinfeccção por dengue tipo 2 com outros arbovírus.
“Perderemos o bonde, enquanto o chicungunha está se espalhando pelo mundo em uma velocidade grande”, aponta o professor Amílcar Tanuri, coordenador do laboratório.
Também professor do laboratório, Rodrigo Brindeiro complementa:
“Os verdadeiros pesquisadores são os alunos, que vão para a bancada. Nós, em boa parte do tempo, estamos lidando com a burocracia, com a papelada”, disse.
Humanas consomem 10%
Cerca de 55% das 80 mil bolsas do CNPq são de iniciação científica, para graduandos e uma pequena parte voltada a alunos do ensino médio, que variam de R$ 100 a R$ 400. Mestrados e doutorados correspondem a 20% do total, com valores entre R$ 1.500 e R$ 2.590. Outros 20% dos incentivos são para a chamada bolsa de produtividade, destinada a pesquisadores de alto nível, que vai de R$ 1.100 a R$ 2.800. A pequena parcela restante está pulverizada em programas específicos de pós-doutorado e apoio técnico, cujo auxílio oscila de R$ 1.000 a R$ 6.500. Menos de 1% do total é concedido a pesquisadores no exterior, que recebem até US$ 2.300, segundo dados do CNPq.
Ao contrário do que diz o governo de Jair Bolsonaro , de que haveria um financiamento excessivo em pesquisas de Humanas, essa área consumiu somente 10,2% do orçamento do CNPq no ano passado para a pesquisa, incluindo bolsas e outros recursos de fomento, destinado à compra de materiais, manutenção de laboratórios, entre outros.
As maiores fatias ficaram com as Ciências Exatas e da Terra (18,9%), Biológicas (17,29%) e Engenharias (15,51%). Ciências Sociais Aplicadas, por exemplo, representaram 5,3% dos investimentos; e Artes, Letras e Linguística, apenas 2,8%.
Carlos Augusto Chernicharo, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estações Sustentáveis de Tratamento de Esgoto, diz que as pesquisas hoje feitas por ele na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em parceria com outras cinco instituições serão interrompidas se o projeto perder os bolsistas do CNPq. Uma das linhas de estudo mais auspiciosas do grupo se concentra no uso do lodo produzido no tratamento do esgoto para recuperar áreas degradadas e até na agricultura.
“Na Inglaterra, 60% do lodo vão para a agricultura, dentro das condições climáticas e sanitárias deles. Estamos estudando os riscos e usos possíveis aqui, pois há muitos nutrientes nesse substrato. Já avançamos muito”, afirma Chernicharo.
Insumos também em risco
Outra cientista que teme ter que adiar os resultados potencialmente positivos de suas pesquisas é Denise Freire, do Laboratório de Biotecnologia da UFRJ. Ela está finalizando o pedido de patente de um biopesticida e tem outros em elaboração. O trabalho está a cargo de dois pesquisadores, um deles bolsista do CNPq. Sem ele, diz Denise, não tem como as experiências prosseguirem. Um atraso nessa área específica será difícil de recuperar, aponta a pesquisadora:
“Provavelmente a próxima revolução industrial será a biotecnologia. E o Brasil, que é forte na agricultura, tem uma demanda considerável no caso dos biopesticidas. Sem contar que a iniciativa privada também está nessa corrida, e as universidades formam mão de obra para o mercado”, relatou.
Ex-presidente do CNPq, o professor da Universidade de São Paulo (USP) Hernan Chaimovich chama atenção para a falta de recursos na agência federal também para o custeio de insumos e equipamentos. O orçamento da agência para essa finalidade sofreu um contingenciamento de R$ 72,2 milhões, o que representa 56% dos R$ 127,4 milhões previstos este ano.
“Os insumos são necessários para que os bolsistas façam as pesquisas. Da mesma forma, não adianta ter os insumos, mas não ter os bolsistas. O que está em risco é o sistema de ciência e e tecnologia do país”, assinala Chaimovich.