Pauta ambiental deve ser a principal marca do cardeal que escolheu o nome do padroeiro dos animais para seu papado
No urgente debate climático e ambiental, o papa Francisco gosta de dar as cartas. E sabe muito bem fazer isso.
Não à toa no último dia 4, data de celebração de São Francisco de Assis, o pontífice organizou no Vaticano um encontro que foi praticamente um esquenta da COP26, a Conferência Mundial do Clima que acontece em Glasgow, na Escócia.
Com direito até a foto pronta para viralizar — no caso, o papa regando uma plantinha levada ao salão principal do encontro — e muitas frases de efeito.
Para vaticanistas é um consenso: a pauta verde deve ser a principal marca do atual papado. Francisco disse que a COP26 precisa “oferecer, urgentemente, repostas eficazes para a crise ecológica sem precedentes e para a crise de valores em que vivemos”. E só isso permitirá uma “esperança concreta às futuras gerações”.
Não é a primeira vez que o sumo pontífice busca pautar as discussões da cúpula climática. Em 2015, o Acordo de Paris foi assinado sob forte influência da Laudato Si’, que havia sido publicada naquele ano e entrou para a história como a primeira encíclica da história da Igreja a abordar o meio ambiente.
Desta vez, Francisco chegou a cogitar ir a Glasgow — essa ideia vinha sendo ventilada desde o início do ano. Contudo, por razões não divulgadas, o Vaticano informou no início de outubro que a participação oficial católica será restrita a uma delegação chefiada pelo secretário de Estado, o cardeal italiano Pietro Parolin.
Mas a ideia é influenciar nas discussões, formal ou informalmente. “Seja como instituição, como igreja, seja como Estado, a Santa Sé exerce um soft power nas relações internacionais. Não tem poder de coerção, mas tem poder de influência. E [no aspecto ambiental] a Igreja está muito alinhada à ciência”, avalia o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e vice-diretor do Lay Centre em Roma.
Guinada ecológica
“Francisco está antenado com aquilo que é possível nos nossos dias. Ele é um papa do início do século 21, e sabe que questões ambientais são essenciais”, comenta o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Para ele, a seara ambiental foi a trincheira onde o papa escolheu “travar as batalhas” mais importantes de seu papado.
A guinada verde de Francisco não ocorreu de forma abrupta. Analistas recordam que o tema já havia resvalado profundamente no religioso anos antes de se tornar papa. O então cardeal Jorge Mario Bergoglio, na condição de arcebispo de Buenos Aires, foi responsável pela comissão de redação da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe (Celam) realizada em Aparecida em 2007. Ali teria ocorrido sua “conversão ecológica”.
“O documento produzido por esse encontro, que mais à frente se tornaria a bússola do pontificado de Francisco, tratava com preocupação a questão da Amazônia. Ao assumir a Igreja, Bergoglio foi maturando esse pensamento ecológico, que havia sido plasmado lá atrás, e percebeu que o papado em si havia focado pouco nesse tema. Ele assumiu para si essa responsabilidade”, analisa a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
Menos de seis anos mais tarde veio o ‘habemus papam’. Em 13 de março de 2013, o argentino se apresentou ao mundo assumindo a identidade de Francisco. Um cartão de visitas de peso. “Ele escolheu esse nome inspirado em São Francisco de Assis, e temos de analisá-lo a partir daí como um papa preocupado com a questão ambiental”, pontua Domingues. “São Francisco falava da criação, interagia com a criação, com a natureza, com aquilo que estava a sua volta.”
Um pontificado verde
A questão ambiental passou a permear discursos papais e estar presente também em ações pastorais da Igreja. Porque no entendimento de Francisco, a coisa funciona assim: puxar as orelhas de quem está no poder, criticando condutas vistas como insustentáveis vindas de quem tem o dinheiro, e cobrar, nas comunidades locais, mudanças de hábitos das pessoas comuns.
É um percurso que gera atritos, claro. Domingues lembra que, principalmente por causa da postura do ex-presidente Donald Trump, católicos conservadores nos Estados Unidos passaram a criticar abertamente o papa.
“Uma parte da Igreja ali, muito alinhada às bases do Trump, se tornou resistente a Francisco, sobretudo por conta das críticas que ele faz sobre questões ambientais. Quando o papa fala que é preciso promover energias renováveis, ele mexe com gente muito poderosa dos Estados Unidos”, afirma o vaticanista.
Em 2015, Francisco publicou a encíclica Laudato Si’, vista como o documento fundamental de seu pontificado. Ele já nasceu com uma indelével marca histórica, pelo ineditismo do tema. A carta é permeada de informações baseadas em estudos científicos. Francisco consultou-se não só com teólogos, mas também com ambientalistas e climatologistas.
“Foi um marco forte porque o papa trouxe a ecologia integral e, ao mesmo tempo, a conversão ecológica como uma proposta, um pedido, um apelo a toda a Igreja”, diz Marcelo Toyansk Guimarães, integrante da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos e assessor da Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB, seção São Paulo).
De lá para cá, foram muitos encontros com figuras ligadas à luta ambiental. Em abril de 2019, por exemplo, esteve com a ativista sueca Greta Thunberg na Praça São. Pedro. “Vá em frente e que Deus te abençoe”, disse à jovem militante.
Em outubro do mesmo ano, o Vaticano abrigou o Sínodo dos Bispos Sobre a Amazônia. Naquele mês, autoridades eclesiais de todo o mundo discutiram questões ambientais, tendo o bioma brasileiro no centro da mesa.
Pandemia e atualidade
De lá para cá, a batina verde de Francisco parecia meio em segundo plano. A explicação, contudo, não está numa mudança de valores, mas sim na pandemia. “As coisas se misturaram. A Covid-19 colocou em stand by muita coisa, possibilitando-nos um tempo maior para reflexão sobre as coisas que fizemos, as coisas que estamos fazendo em relação ao mundo”, comenta Gerson Moraes.
Questões como pobreza e a importância das vacinas passaram a aparecer mais nas declarações do papa do que o meio ambiente. Uma necessidade dos tempos. Mas desde o início deste ano, quando Glasgow começou a aparecer no radar, Francisco voltou a insistir no tema ecológico.
Domingues avalia que o papado de Francisco está numa fase de consolidação. Todas as ideias novas que o argentino queria apresentar para a Igreja já estão postas. Ele vive um momento quase didático: repete os mesmos pontos para sedimentar seus princípios do magistério da Igreja. É uma maneira de dar solidez ao seu papado, tornando fundamental que seus sucessores partam desses pontos como verdades já firmes.
Mirticeli Medeiros atenta para o papel do Vaticano junto aos indivíduos de todas as partes do planeta. “No pontificado de Francisco, essa mensagem de conscientização ganha outra força, outra proporção, porque ele é um líder bastante ouvido e consegue exercer influência junto à comunidade internacional”, ressalta. “O Vaticano e sua postura soft power, a depender de quem está à frente, pode fazer a diferença. E Francisco tem feito.”
“Os apelos do papa têm ultrapassado os muros da Igreja”, acrescenta a vaticanista. A delegação que representa Francisco tem o que falar na COP.
E há uma preocupação com a lição de casa: a Igreja tem cobrado de paróquias e instituições que adotem princípios sustentáveis e a própria Santa Sé estuda ajustes para reduzir sua pegada de carbono. “A pedido do pontífice, iniciativas ‘dentro de casa’ estão sendo feitas”, afirma Mirticeli Medeiros.
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