Em 15 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que facilita a posse de armas no Brasil. O texto altera o Estatuto do Desarmamento, aprovado em 2003, que limitava o acesso a armamentos no país. Mais que a posse de arma, entretanto, as pessoas estão sendo incentivadas a reagir. A avaliação foi feita pelo psicólogo clínico e jurídico Shouzo Abe, em entrevista ao Projeta.
Uma pesquisa do instituto Datafolha divulgada em dezembro de 2018 apontou que 61% dos brasileiros consideram que a posse de armas de fogo deve ser proibida, por representar ameaça à vida de outras pessoas.
Nesta semana, uma dessas ameaças foi feita pelo policial militar Augusto Cesar Lima Santana, em uma lanchonete no Rio de Janeiro. Armado, ele entra no local, ameaça motoboys e agride a dona do estabelecimento. Ele estava chateado porque o sanduíche que ele havia pedido foi entregue errado. Ele queria sem molho.
Pelo novo decreto, a dona da lanchonete também poderia estar armada. Antes, a Polícia Federal julgava sobre a efetiva necessidade da posse, mas perdeu esse poder. Agora, o texto considera que alguns grupos têm, automaticamente, a necessidade de se armar, como titulares de estabelecimentos comerciais e moradores de estados que tinham, em 2016, taxas acima de dez homicídios por cem mil habitantes.
O único fato previsível é que, com a flexibilização, o desfecho na lanchonete do Rio de Janeiro teria maior probabilidade de ocorrência de mortes. O caso chama atenção ainda para as avaliações psicológicas realizadas para a posse de armas de fogo. A aprovação do policial no teste, obrigatório também para quem adentra a corporação, deixa explícita a necessidade de tratar o assunto com maior rigor e atenção.
Shouzo Abe diz que “não houve uma discussão ampla sobre as várias situações e consequências” da flexibilização da posse de armas no país.
Projeta: Para você, qual a importância da avaliação psicológica para posse de armas?
Shouzo: Vemos muitos comportamentos impacientes, impulsivos, a pressa que nunca tem fim, a imprudência alheia que nos atinge o tempo todo e que pode ocasionar em vários tipos de violências. Em momentos de estresse ou quando o indivíduo se sente ameaçado dentro desse espaço de convivência, alguém com uma arma pode agir ou reagir, são questões de segundos que uma arma pode ser utilizada de diversas formas e causar danos irreparáveis. A avaliação psicológica tem o intuito de entender como está estruturado o psique e emoções da pessoa dentro do seu contexto histórico-social e como essa estrutura pode reagir e agir em momentos de estresse, como estão os controles dos impulsos, da raiva, sua capacidade para entender regras e também para cumpri-las. O ser humano não é um ser estático ou cristalizado, mas que age motivado pela sua atual situação e com base em suas construções e desenvolvimento psíquico.
Projeta: Como é feita essa avaliação psicológica?
Shouzo: Existe uma instrução normativa do Departamento de polícia federal – nº 78, de 10 de fevereiro de 2014 que orienta e determina a forma como esta avaliação deve ser feita, todos os profissionais de psicologia precisam conhecer a fundo o que esse documento aponta para realizar sua atividade. O documento deve seguir as instruções e até mesmo o resultado da avaliação tem que ser apresentado no formato apontado pela instituição.
Usa-se testes psicológicos que buscam avaliar a concentração, a existência de alguma psicopatologia que impeça o manuseio da arma, a atenção concentrada e difusa, como a pessoa rege ante situação de estresse entre vários outros fatores. Há um fundamental e insubstituível procedimento que é a entrevista. Os testes trazem muitas informações, mas é com a entrevista que o profissional consegue informações mais precisas e pessoais do candidato.
Projeta: Como deve ser a atuação profissional nesse contexto?
Shouzo: Um profissional de psicologia que deseja entrar nesse contexto de trabalho deve estudar muito, estar totalmente ciente de sua responsabilidade, ter buscado capacitação específica na área (…) Esse profissional tem entendimento pessoal do que é uma arma, para quê ela serve, qual seus danos possíveis, na história de vida desse profissional qual o conceito foi introjetado desse objeto? Teoricamente ele sabe sobre os estudos, as estatísticas e as pesquisas voltadas para esse manuseio? Tecnicamente esse profissional sabe quais instrumentos psicológicos utilizar para coletar dados psicológicos de uma pessoa que deseja possuir ou manusear uma arma e além disso, esse profissional conhece a legislação, as resoluções sobre avaliação psicológica, o que o Código de ética diz para que ele consiga fazer esse trabalho? Ele sabe reunir os dados psicológicos fornecidos pelos instrumentos e materializar o psique desse indivíduo em um laudo ou um atestado dentro do rigor ético e técnico exigido para esse trabalho? A sociedade está confiando que esse profissional fará seu trabalho com qualidade.
Projeta: Tendo em vista todo esse processo, qual sua opinião sobre a flexibilização da posse de armas de fogo no país?
Shouzo: Entendo ser de grande necessidade a atenção ante as possíveis consequências dessa flexibilização. A posse de arma, que é o direito de ter uma arma dentro de casa (e não transitar com ela fora do domicílio) traz consigo muitas outras responsabilidades. Muitos dizem que querem o direito de se defender e por isso querem uma arma, desde criança escutamos na TV, nos rádios e todos os meios de comunicação que a polícia, estudos e pesquisas orientam a não reagir ante um assalto, por exemplo. Parece que essa orientação teve uma mudança a partir desse decreto pois agora a pessoa está sendo orientada a ter a posse de uma arma e reagir, a partir daí será uma guerra pra ver quem tem mais habilidade no manuseio da arma.
Quem tem condições financeiras para tirar essa licença e também comprar uma arma? Que não são coisas baratas, me parece que a possibilidade de defesa se encontra para quem tem boas condições financeiras e sabemos que isso é para minoria da sociedade. O decreto então beneficia qual porcentagem da população e quais tipos de empresas?
Penso que garantir a posse de arma não deve ser confundida com uma tentativa de melhorar a segurança pública (…) Tendo mais armas na sociedade qual garantia o governo nos dará de que estas ficarão apenas em casa e não aparecerão nos estádios de futebol, no trânsito, nas ruas e até mesmo nas escolas?